Revista da Faculdade de Engenharia e Arquitetura
             Vol.3 N° 1 Out. 2001          ISSN 1517 - 7432
 
PAISAGEM ANTRÓPICA E ARQUITETURA MODERNA NO BRASIL.
Renato Leão Rego1
Rego, R.L. Paisagem Antrópica e Arquitetura Moderna no Brasil. Revista Assentamentos Humanos, Marília, v3, n. 1, p11-15, 2001.
 
ABSTRACT

This work approaches the subject of modern architecture in Brazil from the start-point of two of its fundamental topics: establishing landscape by overlaying the architectural artefact upon nature, and modeling an interior space dependent on the transparency of the enclosure and on the image of surrounding nature. These characteristics reflect distinct practices in international modern architecture, grafted onto modern brazilian architecture which assimilated them and applied them without the same convictions and intentions, transformed and incremented upon mutual contact.

Key Words: modern Brazilian architecture, landscape, architectural design, transculturation.

Palavras-Chave: arquitetura moderna brasileira, paisagem, projeto arquitetônico, transculturação.


1 Arquiteto, doutor em arquitetura pela Universidad Politécnica de Madrid, professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá, PR – UEM.


A arquitetura brasileira se tornou moderna e a Arquitetura Moderna, a despeito de suas premissas originais, se fez brasileira, concretizando aquela noção de transculturação1 que compreende este processo como o toma-lá-dá-cá do contato entre culturas, no qual os indivíduos são transformados e transformam-se, a si mesmos e ao mundo circundante, por meio de práticas ambivalentes que envolvem, no caso do Brasil, a assimilação, a adaptação, o deslocamento2 , por certo também a rejeição e a perda, bem como o amolecimento e a fusão notados por Gilberto Freyre, desencadeando um processo complexo de ajuste e recriação – cultural, artística, literária, lingüística, pessoal – que tem permitido o nascimento de novas configurações culturais vitais a partir daquelas idéias e formas originais concorrentes no choque e na aproximação de culturas diferentes.
A assimilação transformadora da arquitetura moderna no Brasil, sem manuais de procedimentos ou princípios teóricos definidos a priori, conferiu-lhe singularidade, granjeou defensores, entusiastas e críticos, e a arquitetura moderna brasileira não deixou de influenciar práticas européias e americanas, o que pode ser notado no vultuoso material publicado e no destaque dado ao tema em outros países, remetendo aquele fluxo inicial de idéias e formas que instituíram entre nós a modernidade em arquitetura3 .
A arquitetura moderna brasileira configura-se já a partir da paisagem que ela funda no ato de sua constituição, entendida por paisagem a projeção resultante da cultura sobre o ambiente natural4 , configurando diferentes combinações de objetos naturais e fabricados, determinantes e determinadas pelas práticas humanas. Como resultado da apropriação e transformação do meio natural pelo homem, uma determinada paisagem antrópica revela o sentido que uma sociedade específica dá à sua relação fundamental com o espaço e com a natureza5 . A modernidade promoveu diferentes enfrentamentos da natureza e, na construção do espaço do homem, modelou paisagens tão distintas quanto aquelas nascidas das construções de Wright, Le Corbusier, Mies van der Rohe, Alvar Aalto, Niemeyer, Artigas et al. A cultura, a convenção e a cognição é que se ocuparam de desenhar estas paisagens.

Artifício e natureza
A paisagem desenhada por esta nossa arquitetura não contradiz os preceitos corbusianos. É na viagem de 1929 à América do Sul que Corbusier passa a fazer da natureza um tema, ao invés de simplesmente alojar seus edifícios nela, fazendo-se notar a passagem fundamental da formulação doutrinária geral sobre o marco natural necessário da cidade moderna à identificação dos elementos chave na conformação da paisagem de um sítio específico. Em sua conferência no Rio de Janeiro, Corbusier faz referência à intervenção humana na natureza como uma “partida a dois, uma partida ‘afirmação-homem’ contra ou com ‘presença-natureza’”6 . Nos projetos sul-americanos desta época podemos ver Corbusier condicionar os pressupostos teóricos de caráter mais genérico expressos na Ville Contemporaine ou no Plan Voisin aos elementos dominantes da natureza, de modo a explorar e conquistar pela ordem geométrica cada uma destas circunstâncias geográficas.
A geometria é a resposta da razão à natureza, atendendo àquele princípio de impor uma grande forma, fundada na lógica cartesiana e no cálculo racional, cuja finalidade é organizar o mundo de uma maneira exata e de acordo com a razão. “Porque os eixos, os círculos, os ângulos retos, são as verdades da geometria e são os efeitos que nosso olho mede e reconhece (...) Medindo, o homem estabeleceu a ordem (...) Porque, em torno dele, a floresta está em desordem com suas lianas, seus espinhos, seus troncos que o atrapalham e paralisam seus esforços”7 .

A intenção de Corbusier ao desenhar as modernas Buenos Aires, Montevidéu, São Paulo e Rio é instaurar a paisagem pelo gesto humano construtivo, culturalizando o ambiente natural, ordenando o contingente, atribuindo-lhe valor. Não só no sentido de que a paisagem emoldurada pelo edifício se oferece à fruição, mas também de que o edifício constitui a paisagem e a tematiza ao mesmo tempo8 . É a percepção transformadora que vai estabelecer e construir a diferença entre matéria bruta e paisagem.

Aberturas
Mas, à plasticidade e aos princípios das formas corbusianas vão sendo acrescentados outros, na mesma intensidade em que as idéias fundamentais da arquitetura moderna vão ganhando em relaxamento, inovação e ousadia, coincidindo com seu período de maturidade. A arquitetura moderna no Brasil vai aos poucos formalizando uma amplitude interna distinta daquela observada nas edificações de Corbusier, cuja articulação dos ambientes, extensão dos espaços internos e caracterização das aberturas ao exterior são extrapoladas no caso brasileiro. Em edifícios residenciais emprega-se o pano de vidro, o que não é comum nas casas projetadas por Corbusier, assimilando aquela transparência ostensiva das construções miesianas - “a defining but not confining space”.
Le Corbusier distribui as janelas na edificação como um pintor que emoldura e faz penetrar a paisagem no interior como um quadro colocado no cavalete; uma escapada súbita já que a paisagem não é algo que entra por todos os lados e que está presente em toda a casa, mas dosada inteligentemente, deve ser um fator de surpresa9 . Nas ilustrações do projeto do MEC percebe-se o desenho do espaço interno emoldurando a vista do Pão de Açúcar ao fundo, fazendo-se lugar de contemplação do espetáculo natural do qual a edificação participa organizando-o, entretanto aplicando por primeira vez em escala monumental a idéia do mur-rideau ou curtain-wall, como reclama Lucio Costa10 . Anos depois, o Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Nova York encampava de vez aquela aparência de continuidade espacial e indistinção entre interior e exterior, mesmo mantendo no conjunto o vocabulário corbusiano como matriz.
A janela em Corbusier se abre ao longe. Raramente ela estabelece uma relação íntima com o espaço circundante, composto de grama e de arbustos, como vemos em Wright, por exemplo, ou em Mies, que dá o tratamento de plano transparente às aberturas da edificação, tragando a natureza envolvente, dispondo muros que se estendem desde o espaço interno até o exterior a fim de sublinhar efetivamente esta conexão.
A abordagem arquitetônica de Mies incentivou um gosto arquitetônico próprio dos anos 50, notado por Lucio Costa11 e registrado com propriedade por Colin Rowe12 , que apontou a ‘simplicidade volumétrica “ideal”, a simetria “ideal”, a centralização “ideal” que se fizeram a ordem do dia então. Esta atitude arquitetônica paradigmática de Mies promoveu uma alteração marcante do espaço moderno de tipo corbusiano – ainda marcado pela dinâmica cubista – para uma amplitude marcada pela estética miesiana. De Canoas a Brasília, continuando na arquitetura paulista do concreto aparente cuja volumetria tectônica se manteve entrosada com os pans de verre, a arquitetura moderna brasileira foi apurando as “características redutivas e esquemáticas” do modelo miesiano em soluções enormemente simplificadas que associavam grandes estruturas a áreas internas definidas por placas translúcidas e transparentes.
Sem pôr de lado as diferenças na formulação da arquitetura moderna brasileira, existentes na forma, nos espaços e sobretudo na aparência dos materiais empregados, decorrentes de intenção plástica, programa, meio, época,recursos, materiais e técnica diferentes, cuja diversidade se flagra nas construções das duas ‘escolas’ que deram a tônica do movimento moderno no Brasil, agindo uma sobre a outra, de modo a se complementar, se opor, se refazer, mesmo assim podemos apreender o modo comum de nossa arquitetura desenhar objetos segundo a idéia de uma forma potente que impera sobre o ambiente natural, para logo romper com os limites destes objetos a fim de acercar-se à natureza circundante.
Os projetos relacionados a cada uma destas ‘escolas’ confirmam as diferenças ao mesmo tempo em que permitem uma generalização desta ordem: dos volumes puristas de imbricada articulação espacial às estruturas de concreto aparente com suas amplitudes predominantemente horizontais, desemboca-se na permeabilidade sombreada por grandes lajes ou caixas de vidro para descontrair o ambiente interno e acercá-lo à paisagem natural. Forma essencial no âmbito daquela plasticidade fomentada pelo emprego do concreto armado, em resposta à solução simplificada do programa; espaços delimitados pela transparência de panos de vidro, vinculados à paisagem que objeto arquitetônico instituiu.
Sendo restrito o espaço reservado para estas linhas, trato deste modo apressado, sob pena de comprometer o critério e o rigor que cabe à consideração, da ocorrência simultânea de elementos compositivos bem definidos de distintas vertentes da arquitetura moderna e dos seus contatos e trocas, senão mesmo da sua eventual fusão.

Considerações finais
Penso que parte da singularidade da arquitetura moderna no Brasil pode ser observada na assimilação das influências contemporâneas externas e na dispersão do caráter restritivo de cada uma das diferentes cristalizações do movimento moderno assimiladas; uma singularidade antecipada no enxerto e adaptação de um discurso internacional à circunstância local – política e economicamente favorável – por meio da alusão a alguns elementos construtivos correspondentes do passado colonial, mas reconhecida sobremaneira no modo corbusiano de fundar a paisagem moderna, associado àquela intenção miesiana de unificar o espaço interno, reduzir e sintetizar os elementos estruturais, derrubar os limites visuais da edificação e pela transparência ligar-se à natureza ao redor.

Bibliografia

1. SPITTA, Silvia. Between two waters. Narratives of transculturation in Latin America. Houston: Rice University Press, 1995.
2. SCHWARZ, R. As idéias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas. 4ed. São Paulo: Duas Cidades, 1992.
3. LARA, Fernando. Outros espelhos: a arquitetura brasileira vista de fora. Anais do Colóquio Arquitetura Brasileira: Redescobertas. Cuiabá: IAB-MG, 2000. P.92-3.
CAVALCANTI, Lauro. Guia de arquitetura 1928-1960. Rio de Janeiro: aeroplano, 2001. Introdução.
4. SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das letras, 1996. Introdução.
5. COSGROVE, Denis. A geografia está em toda parte; cultura e simbolismo nas paisagens humanas; SAUER, Carl O. A morfologia da paisagem; e BERQUE, Augustin. Paisagem-marca, paisagem-matriz. In: CORRÊA, R. L. e ROSENDAHL, Z., org. Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.
SANTOS, Milton. Da sociedade à paisagem: o significado do espaço do homem. In: SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 3ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
6. LE CORBUSIER. Precisiones respecto a un estado actual de la arquitectura y del urbanismo. Barcelona: Poseidon, 1978. P.260.

7. LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1989. P.43-4.
8. MARTINS, C. F. Bajo aquella luz nació una arquitectura... Block, n.2, maio. 1998. Buenos Aires: Universidad Torcuato di Tella. P. 83.
9. MOOS, Stanislaus von. Le Corbusier. Barcelona: Lumen, 1977. P.353.
10. COSTA, Lucio. Arquitetura bioclimática. In: COSTA, L. Registro de uma vivência. 2ed. São Paulo: Empresa das artes, 1997.
11. Idem.
12. ROWE, Colin. Manierismo y arquitectura moderna y otros ensayos. Barcelona: GG, 1978. P.137.

 

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