Revista da Faculdade de Ciências Odontológicas   Marília/SP, ano 2 , n°2, 1999 ISSN 1516-5639
     

ARTÉRIA DE CALIBRE PERSlSTENTE EM LÁBlO INFERIOR.
REVlSTA DA LITERATURA E RELATO DE CASO.

*Elio Hitoshi 'SHINOHARA
**José Maria BERTÃO
***Marcelo Macedo CRIVELINI
****Alvimar LIMA de CASTRO
****Éder Ricardo BI
AZOLLA


A Artéria de Calibre Persistente, foi descrita como anomalia vascular onde ramo arterial atinge a camada submucosa, sem diminuição de seu calibre. Descrita originalmente no final do século XIX como patologia gástríca, o primeiro relato na boca foi feito apenas em 1973. Esta entidade patológica era descrita como rara na boca até 1998, quando um grupo de patologistas definiram ser entidade vascular comum.
O objetivo deste trabalho seria o de familiarizar o cirurgião-dentista clínico com esta anomalia vascular, que apesar de ser considerada comum, é pouco relatada ; é feito o relato de caso, a revista de conceitos, aspecfos clínicos, tratamento e é abordada a discutível semelhança clínica entre a artéria de calibre persistente e o carcìnoma epidermóide de lábio inferior.

Unitermos: Artéria de calibre persistente, mucosa bucal, diagnóstico.


   INTRODUÇÃO

Artéria de calibre persistente ( A.C.P.) foi definida como sendo ramo arterial que atinge a camada submucosa sem diminuição de seu calibre4. Segundo MIK11 et al. ( 1980), a primeira descrição desta entidade patológica foi atribuída à Gallard em 1884, que relatou 3 casos fatais de hemorragia gástrica devido à ruptura de artérias calibrosas anormalmente situadas na camada superficial submucosa do estômago. Posteriormente foram relatados casos ocasionais ainda no estômago ( CHAPMAN;LAPIl, 1963; MILLARD13, 1955) e no intestino delgado ( MATUCHANSKY10 e colab., 1978). VOTH14 em 1962 sugeriu o termo descritivo persistência de calìbre , para denomìnar esta anomalia arterial e MATUCHANSKY10et al. ( 1978) sugeriu o termo grande artéria calibrosa solitária.
Na boca, o primeiro relato de artéria de calibre persistente, foi feito em 1973 por HOWELL; FREEMAN3, com uso do termo artéria Iabial inferior proeminente. Neste trabalho, os autores relataram 7 casos com tumefação pulsátil em lábio inferior próximo à semimucosa ; porém foi MIK11 et al. ( 1980) que ao relatarem mais 3 casos estabeleceram o termo artéria de calibre persistente.
JASPERS4 em 1992 levantou 5 relatos na literatura de A.C.P. na boca e acrescentou 2 casos. LOVAS ; GOODDA6( 1993) levantaram 14 casos relatados e descreveram mais 2.
Em 1998, MANGANARO8 referindo MIKO11 et al. ( 1980) como pioneiros na descrição desta anomalìa vascular na boca, totalizou 7 relatos prévios e acrescentou 2 casos. Até então A.C.P. era tida como anomalia vascular rara. Ainda em 1998, LOVAS7 e colab. reuniram 16 caso prevìamente relatados e acrescentaram outros 210 casos, descrevendo então a A.C.P. como anomalia vascular comum na boca.
Neste trabalho, é feíto o relato de caso, assim como a revisão de conceitos , aspecto clínico, tratamento e é abordado a discutivel semelhança clinica entre a artéria de calibre persistente e o carcinoma epidermóide de lábio inferior.

   CASO CLÍNICO

Paciente masculino , 67 anos , leucoderma , foi encaminhado à Clínica de Estomatologia da F.O. Araçatuba-UNESP, para avaliação de lesão em lábio inferior, com 1 mês de evolução referida. À ectoscopia apresentava-se corado, hidratado e com estruturas faciais dentro da normalidade. À oroscopia notava-se mucosas íntegras, coradas, elásticas e úmidas; dentes em regular estado de conservação e higiene. Em mucosa labial inferior esquerda, notou-se lesão tubular submucosa, serpentiforme, pulsátil com ritmo arterial, de coloração violácea, com cerca de 1,0 cm em maior diâmetro e recoberta por mucosa normal, sem infiltração de base e sem sinais inflamatórios ( fig. 1 ).
Em história pregressa, paciente não referia trauma e nem hábitos locais. Clinicamente não foi encontrado nenhum indício sugestivo de presença no tecido adjacente, de massiva proliferação vascular. Frente a estes dados, foi feito o diagnóstico presuntivo de artéria de calibre persistente labial.
Sob anestesia local, realizou-se exploração cirúrgica da área pulsátil e na camada submucosa , no sentido póstero-anterior, detectou-se artéria com calibre aproximado de 1 mm ( fig.2).
Este vaso foi isolado e ligado com fio de algodão 2-0 e foi removido sua porção superficializada. Após limpeza e irrigação da cavidade cirúrgica, a mucosa foi suturada com fio de seda 4-0. Foi prescrito analgésico,o período pós-operatório evoluiu sem intercorrências. E a sutura, removida no 70 dia.
A análise anatomopatológica da peça coletada revelou fragmento de artéria, o que, pela sua posição anormalmente superficial, foi conclusiva para o diagnóstico de artéria submucosa de calibre persistente (fig.3).

   DISCUSSÃO

O termo descritivo Artéria de Calibre Persistente ( A.C.P.), foi utilizado inicialmente para denominar anomalia vascular na submucosa do estômagoll. Os primeiros trabalhos que relataram esta anomalia vascular na boca, a associavam à lesão ulcerada de mucosa, possivelmente pela isquemia que a pulsação vascular imprimia à mucosa ( MARSHALL; LEPPARD9 , 1985; MIKO 11et al., 1980) e que dava origem à necrose e à ulceração tecidual. MIKO 11 et al. ( 1980) relataram 3 casos de A.C.P.
em lábio inferior que clinicamente apresentavamse como úlceras que simulavam o carcinoma epidermóide. MIKO 12 et al. ( 1983), descrevem outro caso de A.C.P. Neste relato, a anomalia vascular estava , de fato ,associada à carcinoma epidermóide de lábio inferior. Estes autores sugeriram que a úlcera crônica produzida por esta anomalia vascular tenha estimulado a transformação epitelial maligna.
Em 1985, MARSHALL; LEPPARD9, descreveram caso de A.C.P. que também acometia lábio inferior, estando associado à úlcera com 5 meses de evolução. Realizaram cirurgia com margem de segurança, pois ,segundo os autores, a úlcera era clinicamente compatível com carcinoma epidermóide, porém o exame anatomopatológico foi compatível com lesão benigna.
Neste relato , o aspecto clínico era de lesão tubular pulsátil à palpação e ao exame visual. Não foi visto úlcera na mucosa ,aspecto este também descrito em alguns trabalhos ( HOWELL; FREEMAN3 , 1973; LOVAS ; GOODDAY6 , 1993; MANGANARO8, 1998).
O tratamento de eleição é a remoção cirúrgica do vaso superficializado, principalmente nos casos sob risco de mordedura mucosa e naqueles pacientes propensos à quedas da própria altura (usuários de álcool, p. ex. ), e nos pacientes incomodados com a pülsação. LOVAS7 et al. ( 1998), referem que na maioria das vezes, a A.C.P. é um achado clínico e sendo assim , não requerem tratamento; porém todos os casos descritos associados à lesão ulcerada foram cirurgicamente tratados.
A literatura refere a apresentação clínica da A.C.P. como lesão ulcerada, semelhante ao carcinoma epidermóide ( HARSANYI; ELGENEIDY2 , 1990; MARSHALL; LEPPARD9 , 1985; MIKO11et al., 1980), sendo até realizado tratamento cirúrgico com margem de segurança ( MARSHALL; LEPPARD9 , 1985). No trabalho de MIKO11 et al ( 1980), os autores mostraram 3 casos de úlcera em lábio inferior, todas na semimucosa apresentando superfície crostosa, e segundo os autores, compatível com ' carcinoma epidermóide. Avaliamos este trabalho e acreditamos que nos 3 casos relatados, não haviam evidências sugestivas para elaboração de diagnóstico presuntivo de carcinoma, apesar do tempo de evolução ( 24, 14 e 2 meses); tendo 0 primeiro paciente, lesão ulcerada com 1 cm de diâmetro, já sería vísível e palpável elevação de borda e infiltração de base, o que não foi relatado no trabalho. Também não acreditamos que a A. C.P. seja pré-maligna como referido por MARSHALL; LEPPARD9 (1985); se assim fosse, encontraríamos mais relatos desta anomalia associada aos tumores de estômago e boca. Acreditamos que a A.C.P. seja um hamartoma, assim como a grande parte dos chamados hemangiomas.
LOVAS7 et al. ( 1998) revisaram arquivos de anatomia patológica de 5 universidades e coletaram 210 casos de A.C.P. e referiram como achado clínico primário a presença de lesão submucosa pulsátil, sem predileção por sexo, acometendo adultos e não associada à úlcera labial e sem características de carcinoma epidermóide. Sendo descrita como anomalia vascular comum. Antes deste trabalho, foram descritos ern revistas internacionais apenas 16 casos de A . C. P. labial ; sendo portanto lesão relativamente nova e pouco conhecida pelo clínico e pelo patologista.
Apresentamos o relato de caso desta lesão pouco descrita e mesmo sendo considerada comum por um autor que reuniu 210 casos , acreditamos em sua raridade clínica; em tempo, por analogia LÓPEZ-RÍOS5 et al. ( 1997), referindo trabalhos anteriores, citam que existem aproximadamente 250 relatos de cisto nasolabíal e sabemos o quanto é íncomum encontrarmos pacientes portadores deste cisto na clínica diária.

Figura l.Aspecto clínico de mucosa de lábio inferior, mostrando lesão tubular, submucosa ( setas), pulsátil e recoberta por mucosa normal.
Figura 2.Aspecto clínico trans-operatório.Visualização
de artéria calibrosa na submucosa de lábio inferior
Figura 3.Aspecto microscópico da peça coletada. Nota-se padronização celular de fragmento de artéria normal. ( Hematoxilina - Eosína, X 40.)


The caliber-persistent artery was descríbed as a vascular anomaly in which the arterial branch reaches the submucosa layer without caliber reduction . It was described in the end of the XIX century as a gastric pathology and the first related case in the oral cavity was only made in 1973. This pathology was thought as rare in mouth until 1998, when a group of pathologists defined it as common vascular entity. The subject of this paper was to aid the clinical dentist to identify this vascular anomaly that although is considered common it just has a few works about it. Its paper presented a case report, a review of the currents concepts, clinical aspects, treatment and the uncertain link between the caliber- persistent artery and the epidermoid carcinoma of the lower lip.

Uniterms: Caliber-persistent artery, oral mucosa, diagnosis.



   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Cirurgião bucomaxilofacial, Conjunto Hospitalar do Mandaqui - SUS l SP. Professor Assistente da Disciplina de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial do Curso de Ciências Odontológicas da UNIMAR., e aluno de pós-graduação em Estomatologia. nível doutorado. Faculdade de Odonlologia de Araçatuba-UNESP.
** Professor da Faculdade de Odontologia da Universidade do Oeste Paulista- UNOESTE , Presidente Prudente - SP. Aluno de pós-graduação em Estomatologia, nível doutorado, Faculdade de Odontologia de Araçatuba-UNESP..
*** Professor Assistente Doulor. Faculdade de Odontologia de Araçatuba-UNESP.
**** Professor Adjunto. Disciplina de Estomatologia. Faculdade de Odontologia de Araçatuba-UNESP.

 

     
 

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